sábado, 28 de maio de 2011

O QUE SERÁ DA BERINJELA?

Da metade do século XVIII à metade do XIX, se algum produto brasileiro encontrasse mercado no exterior, a euforia durava pouco, como a de um gol anulado. Mas o café, um século depois da mineração, reinseriu o Brasil nos mercados internacionais e se mantém até hoje.
Se, em 1830, representava apenas 20% do total exportado, passou para 48% em 1850 e chegou a 68% em 1890. Tais números podem ser vistos com otimismo, pois a capacidade de importar depende da capacidade de exportar e o Brasil começou a ganhar de goleada com os saldos favoráveis da balança comercial.
Contudo, os números mostram o perigo para um país que tem as exportações concentradas numa variedade cada vez menor de produtos. O Brasil, todo o Brasil, ficou refém do café, como um time de onze depende de um único atacante.
O café também consolidou o caráter altamente especializado nas exportações de gêneros primários, como era no Período Colonial, com o açúcar, e é ainda hoje, com o agronegócio. Enquanto isso, alguns poucos times do campeonato mundial especializaram-se na industrialização.
Em termos políticos, a elite cafeeira passou a controlar as decisões do Estado, como atesta a promulgação da Lei das Terras, de 1850, impedindo a democratização do campo, ao contrário do que fez o governo dos Estados Unidos. Além disso, quando o café dava lucro, este era capitalizado, mas quando a crise gerava prejuízo, este era, e é, socializado. A socialização das perdas é a única parte do socialismo que interessa aos capitalistas.
A elite agrária, que um dia foi a do “café com leite” e hoje é do agronegócio continua fazendo do Estado uma instituição criada à sua imagem e semelhança, na defesa de seus interesses, como atestam os resultados da aprovação pela Câmara do Novo Código Florestal. Goleada imposta pelo time da bancada ruralista. A maioria dos deputados aprovou o que a esmagadora minoria dos brasileiros deseja.
Exercitando o poder da imaginação, da utopia do agora, a aprovação do Novo Código Florestal pode vir a ser um tiro no próprio pé, como tem sido no peito de quem luta pela floresta, nossos Gracos. Se os mercados internacionais são sérios e levarem adiante a política de não comprarem produtos saídos do trabalho infantil, do trabalho escravo, do desmatamento, da desertificação, do sangue dos assassinados, o que será do agronegócio?
Serão falácias os discursos sobre aquecimento global, camada de ozônio, derretimento das calotas polares e aumento do volume dos mares e oceanos? A luta mundial pela preservação das nascentes de água potável não interessa mais ao mundo globalizado? O único Deus que restou é o deus-mercado? Todos os times perderão o campeonato mundial?
Como já sei as respostas para essa floresta de interrogações, vou treinar minha filha Duda, de sete anos, a comer folhas de talão de cheques ao invés de couve-flor, cartões de crédito no lugar de brócolis. E a beber números, não água.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

MÍDIA: O QUARTO PODER

O que está por trás de uma notícia, de uma mensagem comercial, de um filme, de uma reportagem na mídia? Qual é a intencionalidade da origem? E qual é a subjetividade de quem assiste ou lê, ou seja, qual é o olhar de quem vê?
A linguagem audiovisual é, ao mesmo tempo, uma arte, cuja essência está no corte da realidade e, por isso mesmo, um exercício de poder do comunicador. A lente da câmera narradora dita o que quer que vejamos. Contudo, a câmera é um ser não pensante, amoral por natureza de coisa. Ela é apenas a extensão do olhar de quem a manipula.
A câmera, o papel jornal, o teclado do computador não pensam. São ferramentas de quem pensa e decide o que mostrar e o que ocultar. A arte e o poder passam pela decisão de alguém, dominador da intencionalidade do texto, da imagem, do recorte da realidade. E o poder do criador determina o que é verdade e o que é não verdade.
O poder do criador conta com a subjetividade do receptor, ou seja, de nossa mortal subjetividade, do olhar construído pela matéria de nossas memórias, de nossas lembranças, de experiências vividas e construídas no universo da cultura, letrada ou não letrada, material ou imaterial.
O poder do criador conta, assim, com a estreiteza do olhar do receptor. Quando essa estreiteza é absoluta, o receptor pede emprestado o olhar do comunicador e decodifica a mensagem como verdade única, indivisível, indiscutível, acabada, indispensável.
Se não há estreiteza no olhar, nossos códigos culturais - repletos de experiências vividas e armazenadas na memória - transformam-se em contrapoder ao poder do comunicador. O exercício do olhar, do ouvir, do cheirar, do lamber, do sentir, tornam-se o alfabeto da crítica, da não aceitação do dogma.
O sofá diante da televisão e do jornal pode ser o túmulo do pensar ou pode ser a catapulta da indignação. Mas a culpa não está no sofá, nem na bunda sentada sobre ele. Está um pouco mais acima, no olhar, no refletir a intencionalidade do emissor e na capacidade de o receptor usar a criticidade para dizer não.
Pelo direito de dizer não ao quarto poder, aqui vai uma leitura indispensável:

http://marcosbagno.com.br/site/?page_id=745

segunda-feira, 16 de maio de 2011

NOMES DOS DIAS DA SEMANA

O modo de produção feudal caracteriza a chamada Idade Média europeia, do século V ao século XV. Suas origens encontram-se em instituições romanas, do Baixo Império (do século III ao século V) e em instituições germânicas, povos bárbaros que invadiram territórios do Império Romano do Ocidente, onde fundaram vários reinos, rompendo a até então unidade romana da Europa.
Entre as contribuições romanas para o feudalismo, destacam-se a crise do escravismo e o advento do colonato, o êxodo urbano, a ruralização da economia, a aristocratização da sociedade, o avanço do cristianismo e o processo de descentralização do poder.
Entre as contribuições germânicas, destacam-se o modo de vida rural dos bárbaros, o comitatus (assembleias dos guerreiros com o chefe tribal onde se faziam juramentos recíprocos), o ordálio (julgamento de caráter divino) e a lei oral, fundada nos costumes tribais.
As instituições romanas e germânicas se mesclaram num longo processo, formando as estruturas fundamentais do sistema. Tais estruturas foram consolidadas por fatores conjunturais, como a insegurança da antiga vida urbana provocada pelas invasões bárbaras, do século III ao século IX, acentuando a já iniciada ruralização. Enquanto os bárbaros invadem a Europa de Leste para Oeste, os Vikings assediaram populações portuárias e ribeirinhas, do Norte para o Sul, e os muçulmanos, bloqueando o Mediterrâneo ao comércio europeu, atacavam de Sul para o Norte.
A insegurança era o denominador comum da vida, o que explica a heroificação do cavaleiro medieval, a arquitetura dos castelos e os jogos entre os cavaleiros, as justas, com suas lanças, espadas, armaduras. A espada era tão importante que muitas delas recebiam nome próprio, como a de Carlos Magno e a mítica do Rei Arthur. A segurança era uma moeda de troca, dada pelo senhor feudal aos servos, cabendo a esses o cumprimento das obrigações costumeiras e hereditárias, incluindo os tributos.
A superestrutura feudal, ou seja, a ideologia do sistema, refletia a vida material. A Igreja cristã tornou-se dominadora e monopolizadora do saber letrado, da cultura intelectual, marcada pelo teocentrismo, pelo misticismo, pelo pessimismo. Adotou a filosofia platônica de Santo Agostinho (séculos IV e V), do servo arbítrio, da predestinação.
Muito do mundo de hoje nasceu naqueles tempos. As ideias são fenômenos de longo prazo e persistem no consciente ou no inconsciente coletivo. Uma das heranças vindas das origens do feudalismo, da fusão da cultura latina, difundida por Roma, e da cultura germânica são os nomes dos dias da semana, como vemos abaixo.

INGLÊS
ITALIANO
Sunday (dia do Sol)
Domenica (dia do Senhor)
Monday (dia da Lua)
Lunedì (dia da Lua)
Tuesday (dia de Tiwaz, deus protetor das assembleias na mitologia germânica)
Martedì (dia de Marte, deus da guerra na mitologia romana)
Wednesday (dia de Woden, chefe germânico)
Mercoledì (dia de Mercúrio,deus do comércio na mitologia romana)
Thursday (dia de Thor, deus dos raios na mitologia germânica)
Giovedì (dia de Júpiter, deus do Céu na mitologia romana)
Friday (dia de Freya, deusa do amor na mitologia germânica)
Venerdì (dia de Vênus, deusa do amor na mitologia romana)
Saturday (dia de Saturno, pai de Júpiter na mitologia romana)
Sabato (dia do repouso, derivado do hebraico shabat)

(Obs. Para alguns estudiosos, Wednesday não deriva de "Woden, chefe germânico", mas de Wotan, o senhor dos deuses entre os germanos. Adaptado de FRANCO JÚNIOR, Hilário, A Idade Média, Nascimento do Ocidente, p. 124.)


domingo, 8 de maio de 2011

PERNAMBUCO REBELDE

Há uma corrente defendida e divulgada por formadores de opinião que fala no pacifismo e no passivismo do povo brasileiro. Chega até a justificar tais ideias como fenômeno “natural”, como efeito do “clima tropical”. Mas a História do povo brasileiro desmente essa versão acientífica e até preconceituosa. Ela é ideológica e interessante às elites, sempre temerosas das ações populares.
Este texto nasceu de uma pergunta em sala de aula. Os alunos estavam interessados na História de Pernambuco, marcada por uma série de levantes, alguns apenas motins, outros verdadeiras revoluções. Muitos foram esmagados com maior ou menor violência pelas forças da reação.

A INSURREIÇÃO PERNAMBUCANA
Pernambuco foi a capitania hereditária mais rica do Brasil colonial no período açucareiro. Foi palco da segunda invasão holandesa, ocorrida entre 1630 e 1654. Embora e elite agrária luso-brasileira tivesse resistido à invasão nos primeiros anos, acomodou-se aos vitoriosos que passaram a financiar a reconstrução de engenhos destruídos e o fornecimento de escravos. Eram os tempos de Maurício de Nassau no Brasil.
Mas a Holanda interrompeu os financiamentos, em função dos gastos com sua própria guerra de independência contra os Habsburgos do Sacro Império e Espanha e ainda da guerra contra a Inglaterra de Oliver Cromwell e seu Ato de Navegação de 1651. Os batavos passaram a cobrar os empréstimos, adotando a política de confisco de bens pessoais dos devedores. A aristocracia rural voltou a enxergar os holandeses como inimigos e passou a apoiar a luta pela expulsão dos invasores que, de fato, nasceu com a própria invasão.
Comandada por João Fernandes Vieira, André Vidal de Negreiros (ambos brancos), Henrique Dias (negro) e Felipe Camarão (índio), a Insurreição Pernambucana derrotou os holandeses em várias batalhas, como a do Monte das Tabocas (1645) e dos Guararapes (1648/1649). A vitória final ocorreu em 1654, com a expulsão dos invasores.
Em homenagem à vitória em Guararapes, o dia 19 de abril passou a ser o “Dia do Exército Brasileiro”.

REVOLTA DE NOSSO PAI (1666)
Após serem expulsos da Brasil, os holandeses se instalaram nas Antilhas e passaram a dominar a produção do açúcar. Como já dominavam a distribuição, lideraram o mercado internacional. O Nordeste brasileiro entrou em colapso econômico, especialmente Pernambuco, que foi arrasado pela guerra. Olinda e Recife estavam destruídas, canaviais queimados, escravos fugindo.
Mas, por outro lado, crescia o sentimento nativista, alimentado pela vitória militar da Insurreição Pernambucana. Foi esse nativismo a base da luta contra o governador Jerônimo de Mendonça Furtado, visto como “um estranho” pela elite pernambucana. Depois de preso e expulso, Mendonça Furtado foi substituído por André Vidal de Negreiros, um dos “quatro heróis” da Insurreição Pernambucana.

GUERRA DOS MASCATES (1710/1711)
A crise econômica continuava em todo o Nordeste açucareiro. Ficou mais aguda com a descoberta de ouro na região das Minas Gerais, deslocando o eixo econômico para o Centro-Sul da colônia. (Ver, neste blog, Mineração no Brasil Colonial).
A elite agrária do Nordeste, especialmente de Olinda, viu seus lucros reduzidos e suas dívidas crescerem. Os portugueses de Recife eram os credores. O nativismo crescia entre os olindenses, agora alimentado pela situação de devedores. No choque entre estes e os recifenses, tomaram a Câmara Municipal e ouviram o grito de Viva a República!
A rebelião foi debelada, mas ficou o grito, alinhavando futuras revoltas.

A CONSPIRAÇÃO DOS SUASSUNAS (1801)
Durante o século XVIII, o nativismo não era apenas uma tomada de posição ideológica contra o transoceanismo que afetou tanto os colonos nos primeiros séculos do Brasil. O sistema colonial estava em crise, como, por certo, todo o Antigo Regime europeu. O iluminismo, a Revolução Industrial, a Independência dos Estados Unidos, a Revolução Francesa e a conseqüente ascensão de Napoleão Bonaparte na França enterraram o mundo moderno e escancararam as portas do mundo contemporâneo, consolidando o capitalismo como modo de produção dominante.
Em Pernambuco, a facção letrada da elite agrária foi influenciada pelo iluminismo, pelas “abomináveis idéias francesas”, no dizer das forças conservadoras, absolutistas e reacionárias. O Areópago de Itambé, fundado em 1798 e o Seminário de Olinda eram centros difusores das novas ideias. Os irmãos Suassunas, senhores de engenho, articularam a independência de Pernambuco e a proclamação da República, que seria protegida por Napoleão Bonaparte.
Uma denúncia interrompeu os planos dos conjurados que foram presos e, logo depois, anistiados. Alguns, como o “Padre Miguelinho”, estarão envolvidos na Revolução de 1817.

REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA (1817)
A Inconfidência Mineira e a Conjuração Baiana não passaram de reuniões conspiratórias, ou seja, não se transformaram em ação. Foram denunciadas e abortadas no berço. Mas a Revolução Pernambucana, que ganhou as ruas, chegou a tomar Recife e outras regiões em luta armada. Seus líderes foram Domingos Martins, José de Barros Lima, Frei Caneca, Antonio Carlos de Andrada e o Padre “Miguelinho”, Miguel de Almeida Castro.
Os rebeldes proclamaram a República e formaram um governo provisório, com apoio de parte das tropas locais. Receberam a adesão da Paraíba, do Rio Grande do Norte, do Ceará e de Alagoas. A presença da coroa portuguesa de D. João VI no Rio de Janeiro não trouxe benefícios ao decadente Nordeste, mas trouxe o aumento de impostos, a opressão militar e a manutenção do regime de monopólios comerciais aos portugueses.
A repressão ao movimento executou vários rebeldes, mas não conseguiu eliminar as causas mais profundas da luta. Os ideais revolucionários continuaram.

CONFEDERAÇÃO DO EQUADOR (1824)
A aristocracia rural nordestina ganhou mais motivos para a revolta: D. Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte em 1823 usando a força e, em 1824, outorgou a primeira Constituição, liberal na forma e centralizadora no conteúdo.
A revolta eclodiu quando o Imperador nomeou Francisco de Paes Barreto para a Presidência da Província de Pernambuco.
Os rebeldes tomaram Recife, proclamaram a República de caráter federativo e liberal. A eles aderiram o Ceará, o Rio Grande do Norte e a Paraíba, formando a Confederação do Equador.
A repressão foi violenta, incluindo a ação de Lord Cochrane e Taylor, mercenários contratados pelo Império. Saques, assassinatos, fuzilamentos sumários marcaram a reação. Desta vez, Frei Caneca, veterano da Revolução Pernambucana não escapou na morte.

REVOLTAS NO PERÍODO REGENCIAL (1831/1840)
Em 1831, ocorreu a Novembrada e, no ano seguinte, a Abrilada. Republicanos federalistas, radicais liberais e nacionalistas levantaram-se contra portugueses, ainda detentores do monopólio comercial.
Em 1832, restauradores (“caramurus”) levantaram-se em defesa do retorno de D. Pedro I ao trono brasileiro. Foi a Revolta de Santo Antão.
No mesmo ano, e por três anos seguidos, no Sul de Pernambuco e no Norte de Alagoas, eclodiu a Revolta dos Cabanos. (Não confundir com a Cabanagem do Pará). A princípio, os rebeldes queriam a volta do Imperador D. Pedro I. Com a morte deste, em Portugal, os insurretos continuaram lutando, apoiados e apoiando a população mais humilde, brancos pobres, negros e índios. Tinha, portanto, um caráter social, lutando pelos mais explorados e excluídos.
Em 1834 e 1835, ocorreram as Carneiradas, lideradas pelos irmãos Antônio e Francisco Carneiro. Pretendiam combater o excesso de centralismo dos governos regenciais, defendendo ideais liberais e federativos.

A REVOLUÇÃO PRAIEIRA (1848/1850)
O início do governo de D. Pedro II não resolveu a crise nordestina que se arrastava de governo em governo sem solução. Pequenas rebeliões mantiveram o cenário de luta, como o Motim do Fecha-Fecha, de 1844 e o Motim do Mata-Mata, de 1847 e 1848.
Em novembro de 1848, começou a Revolução Praieira, a última importante do Império. A substituição de um gabinete liberal por um conservador, na capital do Império, desencadeou ao movimento rebelde. Porém, desta vez, não se tratava apenas de uma luta entre facções das elite, liberais contra conservadores. No bojo da revolução estavam a revolta as revoltas da população contra a concentração da terra, contra a exploração econômica e a marginalização política. Uma só família, a Cavalcanti, era proprietária da maior parte das terras agricultáveis, o que se refletia em força política.
Os ideais republicanos, federalistas, liberais e antilusitanos eram muito fortes e encontrados em lutas anteriores, desde o período colonial. Ao tomarem o poder, os praieiros proclamaram a República, nacionalizaram o comércio, instituíram a garantia do trabalho, o voto universal, a liberdade de imprensa e várias reformas sociais.
Os ecos da Primavera dos Povos e de ideais socialistas chegavam ao Brasil. Defendidas pelos liberais mais radicais, as ideias praieiras e a efetiva participação das massas populares no processo, assustaram muitos líderes do movimento. Temerosos do caráter popular, mudaram de lado e passaram a colaborar com as forças repressoras imperiais, enfraquecendo a luta. Apenas o capitão Pedro Ivo Veloso continuou a revolução, apoiando-se em forças populares. Foi traído pelo próprio pai e preso pelas forças repressoras.

domingo, 1 de maio de 2011

HAITI: OS LIMITES DO LIBERALISMO, O JACOBINISMO E O DARWINISMO SOCIAL




  • O iluminismo foi a ideologia das Revoluções Burguesas, das Revoluções Atlânticas, que marcaram a transição do capitalismo comercial mercantilista para o capitalismo industrial liberal. Na Europa, centro do sistema, a classe burguesa estava suficientemente forte para liderar as forças de transformação e superação do Antigo Regime. Assim foi na Revolução Puritana, na Revolução Gloriosa, na Revolução Industrial, na Revolução Francesa e outras até o século XIX. Assim também foi na Independência dos Estados Unidos.

  • Fundamentado na Razão burguesa, o liberalismo tinha seus limites. Derrubar o Antigo Regime, sim; atender às reivindicações das massas, não. Assim foi com os “Niveladores” ingleses e com os “Iguais” de Graco Babeuf na França, apenas para citar dois exemplos. Assim também foi com os escravos dos Estados do Sul, nos Estados Unidos. Para estes, liberté, freedon, não.

  • A burguesia não permitiu o avanço revolucionário, esmagou a revolução dentro da “sua” revolução e limitou as mudanças às suas próprias conveniências de classe. Na América Latina, naqueles tempos de rebeliões, não havia uma classe burguesa, como havia na Europa. A liderança do processo ficou nas mãos da elite agrária, da aristocracia rural, enfim, dos grandes proprietários de terras e de escravos. Para essa liderança, a “revolução” significava romper com a metrópole, mas preservar as estruturas internas que a beneficiavam, ou seja, manter a plantation e, com ela, a escravidão. O liberalismo tinha seus limites e as novas nações independentes preservaram o passado colonial interno, ao sabor dos interesses dos caudilhos e coronéis.

  • O maior avanço ocorreu na Convenção Jacobina, liderada pela pequena e média burguesia. Foi a fase mais popular e mais radical da Revolução Francesa, marcada pela República, pelo congelamento dos preços, pela execução do rei na guilhotina, pelo Terror e pelo fim da escravidão nas colônias. Tais avanços tiveram curta duração. A alta burguesia retomou o poder e a reação burguesa anulou grande parte da obra jacobina, inclusive o fim da escravidão. Contudo, o passado e o futuro ameaçavam o presente da alta burguesia reacionária. O passado era representado pelas revoltas da nobreza, desejosa da volta do Antigo Regime, apoiada por monarcas absolutistas de outras nações. O futuro era consubstanciado nas revoltas populares dos sans-culottes e dos camponeses, numa reedição das jacqueries do século XIV.

  • Assim, ameaçada por forças que ela não soube derrotar, a alta burguesia francesa preferiu ir para os bastidores do poder, colocando Napoleão Bonaparte na frente do palco político. Nascia, com o golpe de 18 do brumário, a ditadura militar burguesa, o bonapartismo. Para as revoltas internas, a paz da baioneta.
    Contraditoriamente, mas dentro da lógica da alta burguesia francesa, Napoleão espalhou o liberalismo pelo continente europeu, derrubando governos absolutistas e, ao mesmo tempo, enviou suas forças repressoras contra o liberalismo jacobino de negros e mulatos do Haiti. Liberté, Fraternité, Egalité, sim; exceto para os “homens de cor”.

  • Nos Estados Unidos da América, Tomas Jefferson orgulhava-se da liberdade conquistada em 1776, contra a poderosa metrópole Inglaterra. Mas recusou-se a abolir a escravidão e a reconhecer a independência do Haiti. Freedon, sim; exceto para os “homens de cor” de seu próprio país e do Haiti.

  • No coração do mundo católico, o papado de Roma discursa sobre a igualdade dos homens, fraternidade e justiça social. Estendeu seu discurso aos nascentes países, reconhecendo a independência das novas nações latino-americanas, do Brasil e da América Espanhola, todos católicos. Mas não reconheceu a independência do Haiti. Independência de novas nações católicas, sim; dos católicos negros e mulatos do Haiti, não.

  • E, mesmo na América Latina, Simon Bolívar, um dos líderes maiores da luta pela independência, pela liberdade, um dos “Libertadores da América”, não convidou o governo do Haiti para o Congresso do Panamá, em 1826, onde foi discutida a integração dos novos países. Pan-americanismo, sim, exceto para uma nação de “homens de cor”, governada por ex escravos, mas tão latino-americana quanto as outras.

  • Entre 1791 e 1804, ocorreu a Revolução Haitiana, marco da luta negra pela liberdade e pelo reconhecimento dos valores africanos. Toussaint Louverture, o Espártaco Negro, liderou seu
    povo no início do movimento libertário. Caiu nas mãos de Charles Lecrerc, comandante e cunhado de Napoleão Bonaparte. Morreu em um cárcere francês.

  • Os jacobinos negros passaram para o comando de Jean Jacques Dessalines. As tropas francesas foram derrotadas militarmente e pela febre amarela, que ceifou, inclusive, o próprio Lecrerc. Em 1804, o Haiti estava independente e livre da escravidão. A “Terra Montanhosa”, na língua indígena do local, tornava-se o primeiro país negro livre do mundo, a primeira nação latino-americana livre do domínio metropolitano.
    Nascia também o fantasma da haitianização, assombrando as elites escravocratas da América e a alta burguesia europeia e norte-americana. A França de Napoleão fora derrotada, muitos anos antes da derrota napoleônica na campanha na Rússia e da derrota em Waterloo.

  • Por necessidade de reconhecimento internacional, o governo haitiano aceitou a imposição francesa de uma indenização pesadíssima de 150 milhões de francos suíços, depois reduzida. Eram os tempos do Congresso de Viena e da Santa Aliança. Era também o tempo de James Monroe, nos Estados Unidos da América. Mas a Doutrina Monroe não reconheceu o Haiti. América para os americanos, sim, exceto para os “americanos de cor”, de seu próprio país e do Haiti. Os Estados Unidos, desde Jefferson, proibiram o comércio com o Haiti, seguindo os passos da França e da Espanha.

  • Somente durante a Guerra de Secessão, com Lincoln na presidência, os Estados Unidos acabaram com a escravidão interna e reconhecerem o Haiti. A Igreja Católica só o fez em 1864, e a Colômbia em 1870. O mundo estava entrando na segunda metade do século XIX e adicionava-se ao temor do haitianismo o darwinismo social, do qual o próprio Darwin não tem culpa nenhuma. Sua teoria foi corrompida pelos interesses imperialistas e neocolonialistas da alta burguesia. Se, por um lado, o mundo ganhava o tripé científico composto por Marx, Darwin e Freud, ganhava também a falácia da “missão civilizadora do homem branco”.

  • Para a liberdade do Haiti e de outros povos explorados da América Latina, era o tempo dos mariners norte-americanos, armados com seu big stick. Para os povos explorados da África e da Ásia, era o tempo da “superioridade natural, de origem divina, dos homens brancos”. 

  • Não só de terremotos alimenta-se a tristeza haitiana.